Texto de Ana Munari

Novamente são perguntas que movem este texto, perguntas similares que algumas pessoas têm-me feito no último mês sobre o mesmo assunto. Desta vez a questão recai sobre uma proposta da Editora Sesi-SP, que criou um formato de aventura juvenil interativa, cuja escritura vai permitir a interferência do leitor. O escritor (um dos autores dessa obra coletiva) publica os capítulos em um blog do WordPress – até agora são três – e os leitores dão sugestões nos comentários. Até aí, nada de novo, pois o que mais há no ciberespaço é gente contando histórias e recebendo comentários. As diferenças aqui são duas: ao resultado desse folhetim interativo a editora dá o nome de romance; o escritor desse romance pode acatar sugestões dos leitores, inclusive o título da obra.

Falei em folhetim. Algum parentesco? Todo! Você pode dizer que não havia a participação do leitor lá no século XIX, mas não é bem assim. Havia, embora não na mesma mídia em que os folhetins eram publicados e não tão rápido como hoje. São notórios os comentários dos narradores de Machado de Assis aos leitores, por exemplo, e grande parte de sua ironia está em dialogar com esse leitor modelo. Certamente esse leitor modelo tem sentido em muitos leitores empíricos, que em reuniões sociais e muitas vezes por carta, teciam comentários sobre os capítulos dos folhetins. Nas edições em livro desses romances folhetins, Machado fazia também referência a esses leitores e também à recepção crítica de sua obra, já que ele trovava cartas com alguns críticos, por exemplo, José Veríssimo. Machado também costumava fazer modificações nas edições seguintes, como ele próprio indica na advertência de uma das edições de Helena: “emendei alguma coisa e suprimi duas ou três dúzias de linhas. Assim composto, sai novamente à luz esta obra que alguma benevolência parece ter encontrado no público”. O quanto havia de sugestões nessas modificações não podemos saber, mas certamente Machado era um escritor que ouvia seu leitor. Um dos personagens mais famosos de Machado, Brás Cubas também mandava seu recado ao leitor: “Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem.”

Esse modo de escrever ouvindo o leitor, me parece, não é uma coisa nova, mas talvez a oficialização de um processo que, de certa forma, é característico da literatura, pois o escritor sempre escreve a partir do que vê, ouve, sente, vive, de suas experiências enfim. Se esse formato interativo pode ser interessante para o leitor jovem que gosta de aventuras, também vai depender muito da qualidade da narrativa. É preciso apontar que grande parte dos comentários aos três primeiros capítulos da narrativa parece ser de adultos, fato que ainda estou tentando entender, embora já tenha algumas hipóteses. Eu mesma fui até lá por curiosidade acadêmica, e me parece que esse é o caso da maioria que lá comenta, embora todos tenham se mostrado entusiasmados pela própria natureza da narrativa e seu universo enigmático. Aliás, para chamar a participação do leitor, certamente essa narrativa terá de ter muitos vazios, para permitir o preenchimento e invocar o desejo de “escreler”, ou seja, de concretizar os sentidos do texto pela escrita.

Perguntaram-me também se eu veria esse modelo de escrita como uma ferramenta para a literatura – e se essa seria a literatura do futuro. Ouvir e dialogar com o leitor sempre foi uma ferramenta da literatura, mas nesse caso talvez estejamos vendo o nascimento de um subgênero, tal como aquelas narrativas que permitem escolher o percurso de leitura e acessar finais diferentes, como o ebook Owned, de Simone Campos. A verdade é que esse desejo de engatar uma relação com o leitor é antigo. Os autores de telenovela desde há muito recebem dados das pesquisas feitas junto ao público, que demonstram a aceitação ou não de determinados personagens e ações e podem ajudar a entender fenômenos de recepção e mesmo determinar movimentos na novela. Essa é uma prática definidora do gênero da telenovela, que fica no ar enquanto tem audiência. No entanto, os autores podem aceitar ou não. João Manuel Carneiro, um dos mais ativos novelistas, por exemplo, não leva em conta esses dados.

Escutar e acatar sugestões de leitores não deixa de ser uma estratégia para ir em direção a determinados gostos e conquistar leitores específicos – e sabemos que o consumidor é o melhor propagandista. Mas o excesso de possibilidades e a tentativa de ter de corresponder às expectativas do leitor podem atrapalhar o processo de escrita. Além disso, essa escritura múltipla pode afastar os mais conservadores, afinal, literatura é também estilo, modo de dizer, e essa literatura de autor esvai-se um tanto no romance interativo. Autoria, aliás, é outro elemento que tem mudado nesses tempos de cultura participatória, de poachers, como bem explica Jenkins.

Criações coletivas têm sido o mote dos processos de produção cultural atualmente, da publicidade aos jogos digitais. Ir ao encontro do consumidor (e desejar agradá-lo, diga-se), e o leitor é um deles, por mais que queiramos encastelar a literatura como arte da tradição, é um traço do nosso tempo, quando os meios de comunicação, sobretudo a internet, saturam-nos de textos, objetos, produtos. Vivemos essa espécie de guerrilha semiótica, quando tudo tem de comunicar, fazer sentido – e quando chocar é às vezes a única maneira de conseguir captar atenção. Quando a publicidade deixa de descrever o produto e começa a criar narrativas com eles, com o consumidor como personagem, e as séries de tevê conseguem nos captar diante da tela como a literatura faz com o leitor diante do livro durante séculos, certamente o campo editorial pressente que precisa agir. Dar poderes ao leitor é algo que a literatura tem feito desde sempre, agora apenas vai ser declarado nos disclaimers, como já se faz com a fanfiction. Aliás, falei em fanfiction, alguma semelhança? Sim, toda. É através da escrita de fanfictions e dos jogos digitais que os jovens podem fazer o que parece têm gostado de fazer: ser protagonistas. Se a literatura os permitir esse protagonismo, eis aí um motivo para continuarem – ou começarem – a ler.

Foto de Luciano Lanes
Foto de Luciano Lanes

 

Pitaco de leitor