Texto de Angela Lago

Telefonei para Annete, uma amiga editora, e lhe contei sobre o projeto. Teríamos pouco tempo, lhe avisei. Queríamos publicá-lo, Gisele Lotufo e eu. Gisele estava com um câncer terminal e gostaríamos de ver o trabalho produzido antes que ela se fosse. Annete Baldi acatou a proposta e concordou em acelerar o processo da cuidadosa produção. A ela respondo o pedido de falar deste livro.

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Gisele, uma jovem artista plástica extremamente talentosa, participou de uma oficina que presidi na UFMG, e eu acompanhava seu trabalho desde então.

Em uma visita me presenteou com uma pequena caveira dentro de uma caixa de fósforos. Coloquei a caveirinha assentada no alto do computador e começamos este livro.

O câncer no cérebro já lhe tirava a coordenação de alguns movimentos e teríamos que usar as minhas mãos. Decidimos falar sobre o que ela me contava: seu sentimento diante de médicos que não tinham mais o que fazer, o mal-estar dos consultórios e hospitais, a sensação de ser cobaia. Veio a ideia de usarmos fotografia, com a qual poderíamos encontrar uma linguagem em comum, já que seria impossível reproduzir-lhe o traço. A fotografia viria a calhar se falássemos de manipulação genética, já que nos entusiasmamos com a possibilidade de manipular as fotos e brincar com elas. Decidimos por uma história simples: uma cientista disposta a descobrir a raça perfeita de cachorro faria experiências. Acabaria por criar o vira-lata. Mas sua criação se voltaria contra ela, em defesa dos seus colegas.

A história nos fazia rir. Era uma história de terror, mas a maior parte do tempo estávamos ocupadas em inventar detalhes que achávamos engraçados. Usamos fotos de nossos queridos cachorros e outras encontradas na internet. Uma amiga pesquisadora nos emprestou seu laboratório para uma tarde de fotografias. Foi a filha dessa professora de química, então menina, Ana B, quem fez a maioria das fotos. A mulher de avental com a cara sempre desfocada sou eu. Também aqui calhava desfocar a cara de uma ciência que então nos parecia desumanizada.

Já não me lembro se foi Gisele ou eu que fotografamos as jaulas com cachorros à venda no mercado central. Mas a fotografia do cachorro “transformado” foi ela quem trouxe. Contou que correu o mais que pôde para fotografá-lo quando o viu. Tinha certeza de que era o cachorro perfeito para a raça perfeita. Estranhei, pois ele me parecia mais um pastor alemão que um vira-lata autêntico, embora um pouco maltratado. Mas Gisele não abriu mão. Era um vira-lata com traços de pastor alemão. Custei a compreender todas as alusões que ela queria trazer à tona com um resto de raça dos cachorros dos nazistas, dos militares, dos policiais.

Somos todos, em nossa diversidade, a raça imperfeita. É sobre isso que este livro fala com certo terror e algum humor, na esperança de encontrar no olhar corajoso e inteligente das crianças leitoras alguma cumplicidade e a sua compreensão.

 

A raça imperfeita