Texto de Ana Munari

– Esse poeminha… esse poema é um mimo, porque é o poema em que ele define o que a poesia é: “estou preso ao meu pensamento/como o vento preso ao ar.” Como é que o vento está preso ao ar? Porque é feito de ar. Eu sou o pensamento.’ – Que coisa linda! ”₁

Essa estranha conversa transcrita acima fica bem mais compreensível quando se a escuta na voz de Cleonice Berardinelli no CD (o vento lá forapoesia), onde ela e Maria Bethânia declamam poemas de Fernando Pessoa. Nesse trecho, Berardinelli faz uma parada para entender a ordem da leitura e corrige a pronúncia do neologismo “furia”, que inicia o poema: “Furia o vento lá fora”. Bethânia pensava que era fúria, e a professora esclarece o uso poético de Pessoa, esse inventador de sentidos. Em seguida, ela faz esse comentário, com sua voz ao mesmo tempo forte – furiando os versos, diria o poeta? – doce e cheia de amor pela poesia. A gente ouve o poema e sabe que Cleonice está dizendo junto “me escuta, escuta bem, prest’atenção”.

Eu nunca fui ouvinte de Bethânia, nunca gostei da sua voz nem do seu jeito de cantar. Que fazer? Sei que parece um disparate, mas há quem não goste de Fernando Pessoa. Houve ainda aquele caso do financiamento para o seu site, enfim, não a tinha em boa conta. Mas, quando ouvi falar desse seu projeto com a profª Cleonice Berardinelli, minha garganta começou a agulhar-se de ansiedade. Agora ele está cá comigo, girando no aparelho sob o laser, e só posso dizer que a voz de Maria Bethânia foi feita para a poesia. Poderia até dizer de alguns deslizes, às vezes causados pela interpretação da sintaxe, pois os versos não só podem brincar com a desordem das coisas como podem desobedecer a gramática, mas o jeito como elas fizeram, comentando e relendo, leva-nos mais perto da poesia do jeito que ela é.

Ler tem disso, a gente lê enquanto interpreta, sobretudo a poesia – ou se faz aquela coisa mecânica, que eu, muitas vezes, faço nas aulas por ter não ter jeito pra coisa, ou se usa a voz para mostrar o que o poema realmente diz, escondido nas palavras. E é isso que os leitores de poesia precisam saber: o poema muitas vezes se esconde nas palavras. E é preciso “ler” para encontrar aquilo que ele diz só pra nós, para cada um de nós de um jeito diferente, como se olhasse no nosso olho. O poema às vezes nos conhece bem, e é sendo assim nosso velho conhecido que mais ele nos aponta.

Da leitura do CD, fiquei com vontade de me encharcar de poesia, de beber até tontear. Fui atrás do Estrela da vida inteira, do Manuel, do Amargos como os frutos, da Ana Paula Tavares, do Navegação de acaso, do Nuno Júdice, do Poesia fora da estante… e queria mais. Entrei no Facebook para buscar uma antiga postagem onde eu citava um poeta e então lá estava alguém declamando um poema da Ana Elisa Ribeiro, do Anzol de Pescar infernos… Delícia!

Li. Lambuzei-me de poemas. Não cheguei à conclusão nenhuma e voltei ao CD. O que é a poesia, então, segundo o poema? É não poder dividir-se das palavras, é ser vento e ar – soprar-se e ser, soprar no ouvido do leitor o pensamento que o leitor pensa é dele, e ser ao mesmo tempo palavra e não dito, palavra e sombra da palavra e luz da palavra. Poesia é o vento que embaralha o cabelo, fecha nossos olhos e penetra na gente, ar que a gente respira e nem sente, mas que falta. Poesia é… (sopro).

₁ DEBELLIAN, Marcio. (o vento lá fora). Cleonice Berardinelli , Maria Bethânia e a poesia de Fernando Pessoa. CD e DVD. Quitanda, 2015.

 

A poesia “furia” na gente