Texto de Beth Baldi –

“Uma nação menos afeita a trapaças diárias e pequenas corrupções – como é o caso da Suécia, da Noruega ou da Dinamarca – passa invariavelmente por escolas que debatam esse assunto todo dia, diz o professor de Ética da Universidade de São Paulo (USP) Clóvis de Barros Filho. Cidadania e convivência em sociedade não são menos importantes de que trigonometria ou gramática, afirma Clóvis, mas são ignorados no programa curricular dos colégios brasileiros.” ZH, Caderno PrOA, 15/2/2015, pág. 8

Segundo a matéria citada e intitulada “Corruptos ou não, eis a questão”, diferentes fatores são apontados por especialistas que estudam o assunto para explicar de onde vem essa corrupção que nos assola: de um estado corrupto, por vezes tirânico, que abre caminho para as pequenas pilantragens cotidianas; da colonização extrativista e pouco construtiva, que acabou instituindo uma cultura dada mais a obter vantagem do que a cuidar e nos deixou como herança um grande complexo de inferioridade; de instituições que não funcionam ou funcionam mal.

Seja qual for a razão que pese mais, o fato é que precisamos agir na busca da mudança, se queremos concretizar o sonho de um país sério e confiável, em que cidadãos honestos e comprometidos com as instituições e o coletivo sejam respeitados e valorizados.

Concordo com o professor Clóvis que inserir esses assuntos no currículo escolar é uma dessas ações necessárias e possíveis, o que implica em colocar em prática, no dia a dia da escola, diferentes propostas sobre os temas da cidadania e do convívio social, buscando oportunizar aos alunos a construção de valores e atitudes de respeito, cooperação e solidariedade.

Mas como fazer isso, sem trazer à escola mais um “penduricalho”, que acaba tirando o tempo didático de outras aprendizagens essenciais? – poderiam perguntar os professores, assoberbados de conteúdos a desenvolver.

Bem, primeiro, acredito que já o fazemos de alguma forma. A questão, me parece, é mais de dimensão, organização e sistematização do nosso fazer, tendo em vista melhores resultados e uma dimensão mais institucional, pensando em obter essas aprendizagens como metas da escola toda, sempre, a cada ano, e podendo repetir as experiências que deram certo. Ou seja, não podemos deixar ao sabor do acaso, de iniciativas individuais de um ou outro professor que se preocupa mais com a questão ou, ainda, de uma abordagem espontaneísta uma área tão séria e complexa. Aliás, mais complexa que todas as outras com as quais tratamos na escola tradicionalmente, na medida em que envolve atitudes, que são muito diferentes na forma de tratar e desenvolver do que os conhecimentos conceituais ou os procedimentos.

Uma coisa é tratar de ensinar um conteúdo matemático como a adição (conceito), por exemplo, objetivando que o aluno venha a realizar essa operação aritmética corretamente com quaisquer universos numéricos (procedimento). São aprendizagens complexas, claro, mas que envolvem uma sequência didática conhecida e com resultados mais previsíveis, que dependem de etapas definidas a serem desenvolvidas ao longo de alguns anos de escolaridade: a construção do número e sua representação, das ideias da operação e suas propriedades, dos algoritmos próprios e alternativos para resolver situações-problema, assim como a construção do algoritmo convencional, com sua representação, sem esquecer a prática e a sistematização desse conhecimento.

Outra coisa bem diferente é tentar desenvolver uma determinada atitude, como o cuidado com o ambiente, por exemplo. Além de levar muito mais tempo, esse trabalho vai demandar muito mais esforço e persistência, tanto de quem ensina como de quem aprende, tendo em vista que passa não só por falar sobre, por experimentar para construir e ampliar conceitos a partir de diferentes níveis de compreensão que vão sendo atingidos e por praticar ou repetir procedimentos, até o conhecimento ser dominado e consolidado. A aprendizagem de uma atitude envolve tudo isso e muito mais. Supõe conhecimento, sim (conceitual e procedimental), mas também, e principalmente, emoção e sentimento, sensibilização, conscientização e valorização, que são formas de interação e apropriação bem mais subjetivas e bem menos previsíveis em termos de resultados, na medida em que o aluno pode saber sobre a importância da atitude, sem conseguir ou querer de fato agir de acordo com ela. É preciso, no caso do exemplo dado, oferecer uma série de vivências significativas junto à natureza, construindo, além de conhecimento, um tipo de olhar curioso e uma interação prazerosa em relação a ela, que oportunize estabelecer vínculo e dar sentido a tal atitude. Da mesma forma, é preciso paralelamente que ele vá avançando no entendimento de que seu desejo individual muitas vezes deve ser deixado de lado em nome de algo importante para o coletivo. E isso pode levar muito tempo!

Em segundo lugar, penso, como o professor citado e outros tantos especialistas no assunto, que as aprendizagens relativas à socialização e à ética são especialmente relevantes, não só porque são para a vida inteira, dentro e fora da escola, mas também porque sem muitas delas não temos nem como ensinar os outros conteúdos. As atitudes, os conhecimentos e os procedimentos têm de ser aprendidos juntos, paralelamente e, dentro do possível, de forma integrada. Aliás, o local por excelência para acontecer essa socialização, como um processo que nos torna civilizados, é a escola, o primeiro espaço a que a criança se integra depois da família e aquele em que ela permanecerá por mais tempo. A questão é: até que ponto dedicamo-nos realmente às aprendizagens que esse processo envolve ou deixamos que ele aconteça espontaneamente, sem nos comprometermos com os resultados?

Precisamos, então, a meu ver, começar tratando esses temas relacionados ao convívio social como conteúdos de trabalho, de modo tão sério e comprometido como tratamos a matemática ou a língua portuguesa, as ciências ou as artes, lendo e estudando sobre eles em equipe, discutindo e nos aprofundando em suas nuances para poder eleger quais os aspectos a serem focados em cada ano ou etapa escolar e em que nível de aproximação. Refletidos e escolhidos os conteúdos e os objetivos podemos, então, planejar as propostas didáticas e as intervenções mais adequadas a serem desenvolvidas junto aos alunos.

Por exemplo, na etapa da educação infantil um dos aspectos a se focar dentro do tema pode ser a divisão dos brinquedos. A partir daí, devemos elaborar em equipe uma série de propostas e intervenções a serem colocadas em prática, em diferentes situações do trabalho escolar e com as devidas adaptações a cada idade, para que as crianças aprendam gradativamente a repartir e a descobrir o prazer de brincar junto. Da mesma forma devemos fazer com outras aprendizagens que julgarmos necessárias nessa área, a cada etapa da escolaridade, como o cuidado com seus próprios materiais e com aqueles de uso coletivo, o respeito às regras dos jogos e brincadeiras, o cumprimento das tarefas nos prazos combinados, o auxílio aos colegas, o uso de formas de tratamento adequadas e respeitosas com diferentes pessoas da escola, a capacidade de ouvir o outro e de trabalhar em grupos, cooperando, a possibilidade de se colocar no lugar do outro etc.

Assim como construímos intervenções didáticas específicas relacionadas a diferentes níveis de desenvolvimento de determinado conceito ou procedimento, podemos também elaborar em conjunto, e para serem utilizadas por todos os professores, diferentes formas de intervir naquelas situações mais comuns do cotidiano escolar, relacionadas a essa área da socialização, como conflitos ou brigas, tratamentos desrespeitosos, disputas e transgressões de regras ou combinados. Além de aprimorarmos nossas próprias intervenções, refletindo em equipe sobre elas, ampliamos o repertório de possibilidades de ação, bem como nossa segurança e tranquilidade diante dessas situações, nos apropriando de suas diversas variáveis e dimensões, o que, por sua vez, nos permite deixar de tratá-las de forma improvisada e isolada.

Ou seja, é preciso que a escola e os professores se organizem para oferecer de forma planejada, sistemática e coerente experiências favoráveis à competência social e ao desenvolvimento moral e ético, encorajando as interações, permitindo que os conflitos venham à tona, e até explicitando-os e trazendo-os para discussão na turma, encorajando intercâmbios e ajudas entre as crianças, auxiliando-as e mediando quando necessário, engajando-se ocasionalmente como companheiro das crianças e facilitando a interação quando a autorregulagem dos alunos fracassa, selecionando e organizando a mobília da sala, os materiais e as suas ações para que provoquem a interação, otimizando, assim, o caráter interativo da sala de aula, numa autêntica experiência de conviver e, especialmente, de aprender a conviver de forma democrática e respeitosa.

Trabalhando em conjunto e numa mesma direção, fortalecidos por subsídios teóricos e práticas cada vez mais aprimoradas e coerentes entre si e com os objetivos a que nos propusemos, tendemos a conseguir melhores resultados, inclusive no que diz respeito a obter a parceria, imprescindível neste caso, das famílias.

A escola pode contribuir para um país menos corrupto?