Texto de Marcelo Carneiro da Cunha

Pois eu tenho um medo danado de livro com tema. Livro de ficção, quero dizer. De tema para pedagogia é um pulinho, e eu acho que a ficção foi inventada para fazer muitas coisas, e até ensinar, mas não como intenção, e sim como subproduto.

Literatura pedagógica me assusta mais do que vampiro, e olhem que eu morro de medo de vampiro, que é a coisa mais assustadora depois de barata e suflê de brócolis, eu acho.

E nisso me vem a minha querida editora Annete Baldi, para quem nenhum ser vivo diz não, me dizendo que viu essas fotos lindas do famoso Araquém Alcântara, e não vinha eu pensando na questão indígena? Será que da união das fotos do Araquém com minhas inquietudes com a questão indígena não poderia sair alguma coisa interessante?

Pausa: da última vez que a Annete me falou de livro com fotos, surgiu o livro Antes que o Mundo Acabe, e dele um dos melhores filmes brasileiros, coincidentemente com o mesmo nome. Portanto, quando ela fala de livro e fotos, eu presto atenção, apesar de eu ser o pior fotógrafo que o mundo felizmente desconhece.

Microsoft Word - Miro april 1Agora, quanto ao tema indígena.

Há anos eu coço a cabeça e penso no Novo Mundo. Esse Novo Mundo, onde você, eu, o senhor aqui ao lado, vivemos. Esse.

O Novo Mundo, todo ele, foi construído sobre um outro mundo que estava ali antes e não foi consultado na hora de se criar o tal Novo Mundo. O mundo indígena estava muito bem e contente na sua parte das Américas, ou na Oceania, quando o mundo branco caravelou até ele e foi se instalando, sem maiores cerimônias. O mundo branco era, na verdade, ocidental e cristão, e logo tratou de instalar algum tipo de império e algum tipo de catequese, para azar de quem já estava ali há horas, tendo esquecido de inventar a pólvora e o aço em tempo de receber condignamente os visitantes invasores.

As vantagens tecnológicas e epidemiológicas dos recém-chegados eram excessivas para os nativos, e o Novo Mundo se fez. Para quem vivia aqui, a alternativa foi sobreviver, do jeito que desse, após muitas tentativas de resistência que batiam de frente com aço e cavalos, algo que a gente não imagina o quanto podiam ser assustadores e insuperáveis, fossem os adversários tamoios, maori, apaches, ou astecas.

E assim se fez, e assim vem sendo. E isso me inquieta profundamente. Um escritor, caros professores, é um cara que não gosta de problemas sem solução.

O que fazer com uma realidade onde os humanos originais precisam conviver com um sistema que os limita, oprime, não os reconhece, os coloca em reservas, lá longe, e tenta esquecer que existem? O que fazer quando esses humanos não podem mudar, sem deixarem de ser o que são? Como lidar com uma realidade na qual alguns dos seres mais legais do planeta são colocados na posição de quem não tem muito a contribuir para com o mundo, quando eles são, praticamente, um mundo?

Uma das saídas, me parece, é mudar o jogo. Não aceitar a proposição de nós e eles, nós sobre eles, nós x eles, nós contra o resto do mundo. Não aceitar a proposição de lá e aqui, lá incompatível com aqui, o mundo da floresta incapaz de contribuir com nada para com o mundo urbano. Isso é falso demais para ser verdadeiro, mesmo que seja afirmado de maneira tão intensa, e há tanto tempo, que essa versão da realidade tenha se tornado a verdade sob a qual vivemos.

E eu vinha pensando nisso, e a Annete sabia, e portanto ela sabia que eu jamais diria não na hora em que ela perguntou se eu queria fazer uma história com as fotos amazônicas do Araquém.

Pausa: eu não conheço o Araquém pessoalmente, mesmo que sejamos praticamente vizinhos. Não conheço a Amazônia (estive uns minutos no aeroporto de Manaus e achei a floresta assustadora pra caramba). Sou um sujeito tão urbano que passo mal na presença de muito oxigênio. Mas eu acredito em um mundo diferente desse aqui, no qual as pessoas se vejam como o que são. Como pessoas, uai, independentemente da escolha de traje ou ausência de.

Me interessa demais a questão da energia, da nossa dependência absoluta em relação a ela. Me causa espanto, como brasileiro, que a gente esteja buscando energia na Amazônia, lá tão longe. Mas, pensando bem, onde mais você pode criar uma represa sem afundar muitas coisas? Belo Monte, por exemplo, vai ser 0,000000000% do território do imenso estado do Pará. O que me incomoda no Pará é a criação de gado, causa número uno do desmatamento, se não me engano. Hidrelétricas são quase nada, e trazem benefícios demais, para nós, ao menos. O que precisamos é não deixar que elas causem problemas, ou problemas grandes, para quem nem ao menos precisa de energia.

E então surgiu Ende/Você, o meu livro com fotos do Araquém, que fala de energia, cidade, floresta, urbanos, indígenas, de nós, deles, das nossas línguas, do que nos torna a todos brasileiros, por opção ou por falta de escolha.

Nele, um menino chamado Miro, habitante da megalópole, é paralisado por uma longa falta de energia. Nada no mundo dele funciona, a não ser o novo livro de fotos do pai dele, que fotografa a Amazônia, vive viajando, e está na região de Belo Monte a trabalho. Miro começa a olhar para as fotos do livro do pai, ainda em provas, e as páginas vão passando e ele vai olhando e vai sentindo. Ao terminar o livro, a luz volta, mas ele não volta ao que era, e prefere ligar para o pai pedindo para se juntar a ele, aceitando o convite para uma viagem a dois que o pai sempre fez e ele sempre recusou, até agora.

Miro olha, Miro pensa, e Miro vai até onde está o pai para olhar esse mundo revelado pelas fotos.

O que acontece com ele é o que eu creio que precisa acontecer com a gente, para finalmente nos darmos conta de que não existe um lá e um aqui, que o aqui e o lá são a mesma coisa, e que eles e nós somos igualmente humanos, e unidos por história, por linguagem, por cultura, por amor a essa terra que é a nossa, de todos nós.
Ende/Você é sobre tudo isso, e ainda tem as fotos.

Espero que vocês experimentem, e me digam o que acharam.

 

Medo de livro com tema