Texto de Ana Munari

São dois dias em que a leitura tem estado o tempo todo, subliminarmente, em meus pensamentos. Ontem, participei de um momento histórico na minha área de pesquisa, quando um teórico do campo, em sua palestra, nos presenteou com novas ideias que ele passara a ter sobre antigos conceitos seus – o resumo poderia ser: “mudei de ideia” ou “agora eu penso diferente”.

É genial quando alguém não para no tempo e continua pensando sobre coisas que podia julgar como constituídas, quando não dá por cristalizados conceitos. E isso tem bastante sentido em nossos dias brasileiros, não?

downloadO encontro de que participei é da área dos estudos de intermidialidade, inscritos na Literatura Comparada, e diante de mim desfilaram as cores, os sons, as palavras, os volumes, as perspectivas, os movimentos típicos da discussão inter artes. Mais: isso tudo também é interdisciplinar, já que ontem, por exemplo, o professor Jørgen Bruhn falou sobre a noção de midiafobia a partir do curta-metragem Cathedral, de Raymond Carver – e ele estava pensando em metodologias de análise de narrativas literárias.

Eu mesma apresentei trabalho, com uma aluna de graduação e fã de Shakespeare, a Ádria, sobre a figuração do dramaturgo inglês no romance O mistério do leão rampante e no filme Anônimo, nos quais Shakespeare é personagem. Brincamos, junto com as duas obras, com as referências basilares ao bardo e, principalmente, com os vazios sobre sua obra, que possibilitam esse crescente “impulso alegórico”, esse desejo, por assim dizer, de usar os significados a nosso favor, para inventar e recriar, virar a moeda, dar sentido a partir de nosso repertório, nosso olhar sobre o mundo.

imagesO último trabalho a que assisti foi sobre a série House of cards, ou melhor, Shakespeare em House of cards: Ricardo III, Macbeth, Othelo. Ontem, Shakespeare estava na turma da Mônica e no cinema. Hamlet foi visto ainda em músicas, imagens pictóricas, romances contemporâneos… Quando uma das palestrantes mostrou as epígrafes do livro House of cards, falando sobre as engrenagens da política, a plateia riu, e ela disse que “qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência”. E rimos mais ainda, porque sabemos que nunca é uma coincidência.

Mas não é só Shakespeare, o homenageado do ano, que passeou por lá, curiosa ou ironicamente vigiando nossas leituras. As relações entre mídias respeitam todo olhar fenomenológico, quer seja para o cânone da arte ou a cultura popular, quer seja, por exemplo, para a arquitetura, tema de uma das palestras, que analisou passagens ecfrásticas no romance Clara and Mr. Tiffany, de Susan Vreland.

Muitas das questões se mostraram teóricas, mas sobretudo relativas à leitura: como temos lido os textos culturais a partir não apenas de nossas experiências com eles ou o efeito deles sobre nós – Iser também estava lá – mas sobre o que eles nos fazem pensar. Ou seja, quando teorizamos, criticamos ou historicizamos sobre as obras, estamos lendo-as. E quando estabelecemos relações entre as obras e entre elas e o que podemos dizer delas estamos falando de nós, afinal, o que somos senão aquilo que expressamos e cuja verdade maior está na arte?

Todas essas discussões sobre nossas leituras têm envolvido também o campo da tradução, já que os pensadores e leitores que cá dialogam pertencem a diferentes sistemas linguísticos – e as palavras aqui significam muito. Dizer não é apenas dizer, mas com que palavras e como. Enfim, a literatura comparada movimenta diferentes percepções, sentidos, sensações e efeitos.

E enfim chegamos à questão. Falei tudo isso para chegar àquilo que o tempo todo, durante o seminário, tem estado em meu pensamento: aprendizagem da leitura e multiletramento. Todas essas maravilhosas discussões só podem ter sentido a partir do valor pragmático que têm para a sociedade – para isso aprendemos, pesquisamos, divulgamos nossos estudos. E a aprendizagem da leitura e o letramento têm sentido na descoberta e na compreensão do mundo, como possibilidade de enxergar o universo da expressão, o artificial, manipulado e manipulável, construído e desconstruído espaço da linguagem que habitamos.

E esse universo da leitura diz respeito sobretudo a nós, sujeitos que interpretamos o mundo enquanto o construímos. Mas… é isso que vemos nas escolas, espaço da aprendizagem da leitura? A multimodalidade, a hiperleitura, a interdisciplinaridade, a experiência subjetiva da leitura, têm sido práticas de letramento – ou multiletramento? Se neste seminário ficou claro como nosso impulso, como leitores acadêmicos, é o movimento inter experiências culturais, também se afigura que esse não tem sido o modo de ler que ensinamos. Não sei dizer o que falta para que toda essa pesquisa e trabalho, que envolvem tempo e dinheiro que não é apenas nosso, finalmente tragam mudanças sociais mais pontuais – a transformação positiva desse mundo, finalidade de todas as ações –, mas sei que está mais do que na hora de, como aquele pesquisador corajoso, sermos capazes de dizer que não pensamos mais como ontem, que pensamos diferente, e então fazermos diferente.

Leitura o tempo todo