Texto de Ana Munari

O escritor português José Luís Peixoto esteve em Porto Alegre há cerca de um mês para o lançamento da edição brasileira de Morreste-me, seu primeiro livro, publicado no ano de 2000 em Portugal. Na ocasião, participei como ouvinte do encontro promovido pela editora no Brasil, a Dublinense, e pelo Instituto Contemporâneo. Morreste-me tem um narrador em primeira pessoa que fala da morte do pai e José contou à plateia que justamente escreveu a partir da morte de seu pai. Naquela época, ele tinha 21 anos e durante um ano escreveu sobre o que sentia em um caderno. Esse caderno, tempo depois, deu origem ao livro, que só agora foi entregue ao leitor brasileiro.

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Ao falar a partir do seu próprio luto, a princípio sem nenhum distanciamento e por isso ainda sob a sombra do “tempo entristecido, o tempo parado” que a perda do pai lhe provocara, José construiu um texto tão autêntico que chamou a atenção de psicólogos e psiquiatras, servindo-lhes como cerne, naquele debate no lançamento, para pensar o luto. Em Portugal, nesses quinze anos de leitura de Morreste-me, ele não apenas circulou entre leitores que se identificavam com a dor do narrador, como suas sentenças foram parar em lápides.

Eu tive em mãos o livro apenas quando cheguei para o debate e ali mesmo comecei a folhear e a me encontrar com aquele texto que, contavam os leitores durante conversa, tinha-os colocado naquele exato ponto quando justamente não temos palavras para descrever o que sentimos. Aquela dor que abre um vazio e que nos faz calar diante da vida que “é cruel por ser vida” movimentou a caneta de José, que seguiu “por linhas invisíveis” e transformou em palavras o silêncio de tudo aquilo que insistia em continuar.

Nunca encontramos o que dizer àqueles que sofrem perdas, mas o que dizemos a nós mesmos quando nos morre alguém que é nosso próprio existir no mundo? Calamo-nos. O tempo parado é silêncio e vazio, ele dói. É que somos mortais e, como nos diz José, para a morte “fechamos-lhe sempre os olhos, na esperança pálida de que, se não a virmos, ela não nos verá”.

Naquele dia, ouvindo o depoimento desses leitores e já sob o efeito do chamamento do texto, achei que não tinha o direito de o ler. Pensei que não seria capaz de o ouvir e de entender o peso de suas palavras quando, naquele momento, meu mundo “queria ser mais que existir”. Entendi que não seria capaz de abraçar o livro em silêncio, aquele silêncio que compreende e olha com olhos sombrios. O que dizer a quem perde um pai, quando flores novas e brotos nas árvores nos falam de vida e de amanhã? Coloquei o livro na estante como quem respeita o tempo, a morte, as lápides inertes e frias.

Mas o tempo, apesar de nossa ignorância e de nosso fingimento, é vivo como o vento que derruba as folhas e traz o inverno. Meu avô, logo que terminava mais um mês de agosto, dizia que ia durar mais um ano. Durou muitos, mas muito pouco para nós, e lá se vão quase vinte anos que ele fez o tempo parar. Sempre é pouco, porque a morte nunca é justa aos que amam. Ela apenas parece mais justa quando é mesmo o tempo que a traz, e perdoamos a natureza em sua sabedoria. Mas quando ela é carrasca, sorrateira e vem antes do prometido pela natureza, o tempo fica tão injusto que a gente quer que ele volte e faça direito. Algo está torto no mundo e é preciso consertar. Mas é o narrador de Morreste-me que sabe dizer desse mundo, não eu.

Este mês de junho me trouxe de novo esse tempo injusto. Primeiro levou Jazmine, nossa gatinha, que se foi de um jeito gauche, deixando um gosto amargo de culpa como se não bastasse a saudade. Depois, uma a uma, quatro de minhas alunas perderam familiares – pai, avôs e avó. Embora algumas pessoas franzam o sobrolho, sei que muitos vão-me entender quando eu digo que as abracei sob o luto por Jazmine, que é dor, é vazio, é silêncio, e uma culpa que só na perda de um filho a morte deve ser capaz de fazer pior.

Então pensei que talvez pudesse tirar o livro daquele seu silêncio na estante e conversar com ele, assim meio pedindo licença, meio me desculpando.

A literatura tem dessas coisas. Ela não perdoa nossa empáfia. A gente abre o livro cheio de certezas, como se o fato de acordarmos todas as manhãs fosse uma habilidade nossa, um poder que se sobrepõe à inércia de um livro. E eu, que tonteio diante da imortalidade das palavras, que me sinto capaz de vislumbrar, mesmo que de esguelha, mesmo que em um átimo, aquela vibração que parece mexer nas linhas do tempo e que só a arte é capaz de fazer, de repente e de novo como poucas vezes, me vi diante dessa sensação do inexplicável.

Como dizer de um texto que nos diz do silêncio? Como dizer de um texto que nos diz justamente do que não sabemos dizer? Como dizer dele, que nos repete aquilo que não sabemos parafrasear e ao mesmo tempo é o que nós, dentro da “prisão do peito”, nos dizemos sem dizer?

Enquanto escrevo – e talvez seja injusto como o tempo que eu diga isto – galhos balouçam no vento folhas ainda molhadas de orvalho. Elas são estrelas que brindam o inverno, brilhantes flocos de neve arco-íris de gotículas d’água e partículas de sol. Como descrevê-las a quem nunca viu? Como dizer do canto contínuo do riacho ali embaixo a se misturar ao murmúrio deste vento? Como explicar o sentido exato de “nunca mais” a quem nunca esteve diante desta dimensão do tempo? Para sempre. Nunca mais. Nunca, nunca mais.

Ainda se eu fosse capaz de escrever este poema, este poema que fizesse brotar este exato brilho das folhas e este exato barulho do vento e do rio e dizer deste agora. Agora como o tempo parado. Goethe sabe, ele falou daquele lugar onde em uma hora exata do dia os limões adquirem um laranja dourado, só ali, sob a brisa e o céu azul: “Kennstdu das Land,/wo die Zitroneblühn,/ImdunkelnLaub die Gold-Orange glühn,/ Einsanfter Wind vomblauenHimmelweht,/ Die Myrthe still undhoch der Lorbeersteht,/ Kennstdu es wohl?”

José também sabe, e Morreste-me é isso. É aquele lugar e aquele instante em que os limões eram dourados para Goethe e onde o tempo está parado para José: “Flores novas e folhas novas nos ramos das árvores, canteiros pintados de malvas, trevos, ervas verdes, verdes desta primavera triste triste.” Do livro, não há mais o que dizer, como não temos o que dizer quando o tempo traz a morte para bem perto de nós, não tão perto que ela nos enxergue, mas muito perto para que a possamos ver.

Eu estava enganada. Morreste-me diz a qualquer um, porque ele não é um livro que fala sobre a morte, como muitos desses que aí vão, pensando que são literatura quando nos prometem ajudar. Também não pensem que vou dizer o que ele é, como se pudesse agora acertar seu lugar na estante como uma lápide estanque. Queria dizer que ele é um romance, porque ele é. Queria dizer que ele é um poema, porque ele é. Mas não posso essa segunda traição, não agora que sou apenas uma leitora, uma leitora abraçada a um livro. Talvez o tempo venha um dia a me permitir mais. Quando a vida não for tão visível como agora, no luto da última página.

Agora, sequer me é dado o direito à paráfrase, como tentamos às vezes com os grandes poemas, como eu tentei ao imitar Goethe. Sim, um livro é capaz de mais do que imitar a vida, é capaz de, não sei. Escutem. Olhem.

“A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais.”

* ilustração de Ludmila Zeman (A vingança de Ishtar, Projeto, 1996)

 

Não espere que o tempo pare