Texto de Ana Munari

Andam dizendo por aí que os leitores de literatura estão desaparecendo. Ontem, eu encontrei três dessas raridades em uma aula no curso de Ciência da Computação. Uma leitora de José de Alencar, um leitor de Dostoievski e uma leitora de romances. Havia outros leitores – de sites, de textos informativos etc –, mas apenas esses três se declararam leitores de literatura. A leitora de romances não conseguiu lembrar autores e títulos, mas eu não considero a apreensão dessa informação como um imperativo para considerá-la na lista desde que passei a esquecer: “Como é mesmo o nome daquele romance? Aquele que o narrador imagina que foi traído pela esposa e que o filho não é dele? – Dom Casmurro, professora? – Esse, esse mesmo, é do… – Machado de Assis, profi.” É verdade que entre meus alunos têm sido cada dia mais difícil encontrar gente que não apenas seja capaz, mas goste de falar sobre literatura e, principalmente, sobre suas leituras. Agora pergunte sobre séries, filmes, música, jogos…

adão iturrusgaraiNo meu tempo de escola e universidade, nós éramos obrigados a ler determinadas obras, era um critério de formação ou para passar de ano. Mas se não fosse, principalmente nos anos 80, o que mais nós poderíamos fazer? Não tínhamos cinema na cidade, nem teatro nem tv a cabo – e televisão aberta nem de longe correspondia aos nossos interesses. Ou jogávamos vôlei ou conversa fora, ou íamos ler. E nosso contato com certo mundo proibido se dava através da literatura – de que outra forma mais poderíamos experienciar coisas impossíveis em nosso pequeno e restrito mundinho interiorano? Mais tarde, meu pai comprou um videocassete, depois, um Atari. Posso dizer com franqueza que desde então eu li menos, sim. Continuei a ter imenso prazer com a literatura, tanto é que cá estou sempre a propagandeá-la, mas eu tinha então encontrado outras maneiras de ter contato, primeiro, com as gentes e suas histórias, depois, com o prazer do desafio do jogo. Ambos estão nas obras literárias.

Esta é uma das razões que há para justificar a importância da literatura: os diferentes e intrincados modos como ela instiga (e incita, excita, acirra, aguilhoa) reações nos leitores diante do mundo que ela refrata (mais do que reflete, ela quebra, desvia).

Confesso que tenho alguma dificuldade em explicar aos meus alunos essa tão propalada superioridade da literatura em relação às outras artes na sua função de narrar o mundo – como fazem as narrativas fílmicas, as encenações dramáticas, algumas canções e poemas, e agora os jogos digitais. Da mesma forma em relação ao mundo da cultura simbólica – a música, a poesia, as artes plásticas. Eu a considero superior, mas creio que essa explicação, embora eu tenha uma lista de argumentos, está no campo do indizível, algo que tenha de ser experienciado. Por exemplo, entendo isso melhor por ter lido A fera na selva, de Henry James (nunca esqueço esse título ou seu autor ou sua história). Um leitor que tenha resposta para essa pergunta é porque também encontrou a sua fera na selva. Então ele simplesmente sabe. Senti isso ao ouvir meu aluno tentando explicar por que ele gosta tanto de Dostoievski.

Na peça Três dias de chuva, de Richard Greenberg, um dos personagens encontra uma caderneta que teria sido de seu pai, falecido há um ano. Walker, o filho, chama a esse livreto de diário e, em certo momento, reclama sobre o pai ter escrito, em uma data específica apenas a frase “Três dias de chuva.” Como alguém podia descrever tantos dias de sua vida apenas com a informação sobre a meteorologia? Ele considera assim o pai um idiota, um insensível para o mundo. Analepse: naquele mesmo apto onde no futuro estará o filho lendo a caderneta, está o pai escrevendo aquela frase. Naqueles três dias de chuva, ele ficará trancado em casa com a namorada de seu melhor amigo, apaixonam-se, vivem sua história de amor e ele decide, enfim, dar vasão à sua criatividade, por estímulo dela, e começa a criar o projeto arquitetônico que será sua obra-prima. Walker nunca vai saber disso, mas nós, espectadores, fomos brindados com a profundidade poderosa da frase “três dias de chuva”, rabiscada em um papel em um momento de grande emoção. Como ele poderia descrever em palavras o que lhe teria acontecido naqueles dias? Através de uma das maravilhas da linguagem, que está em sua capacidade de simbolizar – de refratar, o mundo – de dizer o indizível, desde que com a cooperação do leitor.

Não vou fazer a lista sobre por que a literatura é a arte das artes – e não é porque às vezes minha convicção seja abalada pela linguagem de algumas séries televisivas recentes –, mas posso dizer que nenhuma adaptação fílmica de A fera na selva me permitiria ter a experiência que eu tive lendo o romance – eu e minha interpretação silenciosa e carregada de meu repertório e de minhas experiências, sem a intrusão de um diretor de cinema, dos atores, dos figurinistas e cenógrafos e suas interpretações. Com a minha trilha sonora, minhas concretizações do cheiro e da aparência das coisas. Há ocasiões em que é extremamente prazeroso rejeitar esses confortos. As artes dão trabalho – a literatura é uma delas.

De resto, deixo para a neurociência explicar o que cada linguagem é capaz de fazer com o nosso cérebro e, assim, conosco.

Três dias de chuva