Texto de Ana Munari

Não é literatura! Mais uma vez essa afirmação foi usada contra Harry Potter, a série britânica bestseller que vendeu em torno de meio bilhão de cópias pelo mundo, em 77 idiomas. É por causa desses números a expressão adjetiva – bestsellerpotter. Muitas pessoas compraram os livros, e leram. Não apenas compraram como leram, se é que vocês me entendem. E livros grossos, pesados calhamaços, que foram lidos com gulodice, folheados, pra frente e pra trás, relidos, consultados, comparados. Bem, durante muito tempo houve quem não acreditasse que aquele-que-não-deve-ser-nomeado tivesse voltado e ainda há quem não acredite em Bufadores de Chifre Enrugado…

Pessoas muito diferentes, meninos brasileiros, british girls, desadultesfrançais, ancianasespanõlas, deutschjugendliche, de diferentes classes sociais e culturas, encantaram-se com o menino que sobreviveu a você sabe quem. O problema é que bestseller nasceu em oposição a clássico, e clássico é aquele conceito que pode explicar o que seja literatura a partir da noção de permanência: aquela obra que é continuamente lida, por diferentes leitores em diferentes épocas e cujos significados são universalizados. Sem dúvida, por ser um gênero inserido no campo das artes, a literatura é quase sinônimo disso. No entanto, justamente por estar na esfera da arte e da cultura, a literatura não é apenas isso. E “youcanlaugh”, diria Luna Lovegood, minha personagem preferida.

A afirmação sobre HP não ser literatura está sempre relacionada à questão mercadológica: é bestseller, não é literatura; [nem li, mas] é bestseller, então não é literatura; vendeu muito, é lido por muitos, é literatura de massa – e literatura de massa não é literatura. Nem vou falar daqueles que, por Merlin!, pensam que literatura infantil e juvenil não é literatura.Para esses, eu olho “for a while as thoughhewere a mildlyinterestingtelevisionprogram”, lembram disso, leitores?

Há confusões por todos os lados – e nenhuma é causada por zonzóbulos. Vamos começar pela temática: histórias de bruxos são bobagem, dizem. Desde que o mundo é este mundo de gentes em torno da fogueira as pessoas contam histórias sobre… bobagens: feiticeiros, deuses, assombrações, monstros – quem tem medo deles? – e assim nasceu a literatura, nos mitos, nos contos de fadas, nas histórias de assustar e de ensinar. Histórias de ensinar não são literatura? Por exemplo: uma história que nos ensina sobre os direitos das crianças é literatura? E uma história que mistura pessoas e dinossauros, já que sabemos que eles nunca conviveram, pode ser literatura? Por Zeus, claro que pode! Porque literatura não se mede apenas por seus temas ou pela natureza de seus personagens, mas também, e talvez principalmente, pela profundidade com que esses temas e personagens representam as questões sociais, humanas, da vida enfim.

Harry Potter é a história de um menino que sobreviveu a você sabe quem. Essas palavras – menino, sobreviver e “você sabe quem” –por si só já permite ao leitor penetrar em um universo muito particular, apesar de todas as referências universais do texto, como a luta contra o mal, a orfandade, o preconceito, a amizade, a lealdade. Sim, tudo isso acontece entre bruxos, elfos, duendes, sereianos, centauros, gigantes, dragões, e entre professores, alunos, pais e mães, irmãos, ditadores, grandes líderes, motoristas de ônibus, donas de bar, gente: com todas as peculiaridades que temos. Além disso, na série de Rowling os bruxos não são de antemão o lado escuro da força; seu caráter, desejos, conduta, são mediados pela família e pela cultura. Isso é muito importante nessa época em que classificamos as pessoas pela etnia ou pela religião. Diferentemente dos contos de fadas, o texto de Rowling relativiza e complexifica a natureza das pessoas e das relações. Até começaram a surgir mais bruxas boas por aí, apesar de que a expressão “bruxa boa” acaba por reforçar a ideia de que bruxos são maus, como se devêssemos dizer cristãos bons, muçulmanos bons, brancos bons.

A literatura, arte da linguagem verbal, também é o “como se escreve”. Nesse ponto, apesar da muito boa tradução de Lya, talvez esses que julgam Harry por sua condição mercadológica deveriam ler no original, em inglês britânico. Não vou dar mais spoilers. Por fim, Rowling, escritora a quem admiro com todas as minhas forças de Doutora em Letras, com o perdão do carteiraço, é a autora de literatura juvenil que provou algumas coisas: livro que vende muito pode ser bom – porque há bons leitores em todo o planeta esperando o livro que os vai despertar para a linguagem da ficção –; séries podem crescer junto com o leitor, começando infantis, adolescendo e amadurecendo, até se transformarem em obras complexas, capazes de dialogar com leitores adultos; aventura, fantasia e suspense podem ser acompanhados de questões humanas e serem bem escritos. Bem, será que Conan Doyle, Agatha Christie, Stevenson, Tolkien, Lewis Carroll, não escrevem literatura? E Robert Galbraith?

Harry Potter é literatura, sim. Mas a gente perdoa, afinal, até mesmo Hermione disse que o Pasquim só publicava bobagens. E vejam só o que aconteceu. Também não sei se é preciso explicar tanto, quando há tantos leitores felizes. Mas não custa lembrar, caro leitor potteriano: “Don’tworry. You’rejust as sane as I am.”1

1 As citações são de Luna Lovegood e estão em Harry Potter e a Ordem da Fênix.

 

Acho que vou descer e comer um pudim