Texto de Beth Baldi –

Neste próximo dia 6 de outubro teremos mais um Encontro de Professores Pensantes, o 8º, promovido pela Editora e pela Escola Projeto. Ele vai tratar desta vez sobre O tabu na sala de aula, com a psicanalista Diana Corso falando e desencadeando um debate entre os participantes sobre “temas difíceis e delicados” que às vezes levam professores a “banir da escola certos textos literários”.

Mesmo não sendo um assunto fácil, vou me atrever aqui a contribuir para a conversa com o relato de uma situação vivida na escola, há algum tempo, a partir do questionamento de algumas mães, sobre um livro adotado no 4º ano (alunos de 9 a 10 anos). O livro era 6 vezes Lucas, de Lygia Bojunga, e a queixa, de que ele abordava de forma muito crua e realista a situação da separação de um casal e de uma nova relação afetiva do pai. Segundo as mães, os temas tratados no livro – traição, mentira, abandono, medos – eram inadequados para a faixa etária e a escola estaria, então, antecipando situações com as quais as crianças “ainda não precisariam” ter contato. Algumas se sentiram especialmente desconfortáveis por não verem adultos de referência ou confiáveis na história e por entenderem que ela faz um “desmonte da figura paterna”.

No livro, de fato, aparecem todas essas questões, mas ele trata, fundamentalmente, da pré-adolescência de um menino muito solitário e sensível, que, não sendo ouvido pela família, sofre e vai lidando, do jeito que pode, com certos conflitos que observa e vivencia, entre eles o da desestruturação de sua família, e com os medos que eles lhe causam. E, como em outras obras de Lygia, o mundo é apresentado de uma maneira realista, sim, sem concessões, mas com profunda sensibilidade e conhecimento da alma humana. “Sem açúcar e com afeto”, como dissemos na reunião realizada com as famílias. Segundo Ana Klauck (1), “ao mesmo tempo em que tratam de temas sérios, os livros de Bojunga encantam por mostrarem o amadurecimento, o desenvolvimento, a consolidação da identidade, a esperança no crescimento interior” e, acrescento eu, a força da imaginação.

Diante da situação, que nos chegou através de alguns emails e encontros individuais, em que as famílias explicitaram seus questionamentos, procuramos, de um lado tentar entendê-los melhor e, de outro, confrontar nossa própria visão: será que realmente estávamos indo longe demais superestimando a capacidade dos alunos? Fomos buscar, então, profissionais que representassem autoridades no assunto para nós e conversamos com um psicanalista e com uma especialista em literatura infantil e juvenil. Eles referendaram nosso ponto de vista de que a obra oferece aos leitores muitas possibilidades de identificação e reflexão, de avanço na percepção e leitura de mundo, bem como na formulação de questões sobre suas vivências, o que favoreceria, em sua opinião, os processos de autoconhecimento, conhecimento do outro e socialização, que fazem parte da função primordial da escola, reforçando que fazer isso através da literatura e da arte seria mesmo o mais indicado!

Esses especialistas nos auxiliaram a pensar também em como acolher essa ansiedade, de certa forma natural, das mães, sem precisar necessariamente abrir mão de nossa proposta. Entendendo melhor, então, os questionamentos, e seguras de nossa indicação de leitura, realizamos uma reunião coletiva (todos os pais da turma em que ocorreram os questionamentos foram convidados, mas compareceram apenas 25%). Abrir espaços de discussão sobre o assunto que gera o conflito, por mais trabalhoso que nos pareça, é sempre essencial, por confiarmos que as conversas produzem troca e, normalmente, só isso já ajuda muito, porque as pessoas se ouvem, se sentem ouvidas, organizam melhor suas ideias, também a partir das ideias dos outros, e ficam mais tranquilas. Nesse caso, queríamos que cada parte pudesse entender melhor a outra e chegar a uma alternativa que satisfizesse de alguma maneira a ambas.

Assim, ouvimos a todos, conversando sobre suas preocupações e sobre as razões para chegarem a desejar a suspensão da leitura (as crianças ficam tristes, algumas até choram em alguns momentos do texto ou adormecem para não ouvir, segundo as mães), e também apresentamos os nossos argumentos a favor do livro, da autora e de sua adoção. Para nós ficava claro que a atitude das famílias era de proteção e cuidado com os filhos, mas também víamos um medo exacerbado em relação ao seu suposto “sofrimento” e, mais que tudo, uma grande confusão no que diz respeito à forma como as crianças assimilam o mundo – ou o que leem, veem e ouvem.

Algumas dessas queixas só reforçaram nossa adoção, na medida em que o que desejamos, com a literatura na escola, e também com outras formas de arte apresentadas aos alunos, é justamente abrir e permitir perguntas, mais do que oferecer respostas. É emocionar e fazer pensar! Se literatura é aquele texto que trata dos temas humanos, mesmo que banais ou cotidianos, mas que especulam sobre o significado da existência, sem lição de moral ou juízo de valor, como diz Ricardo Azevedo (2), permitindo ou até provocando a emoção e a confrontação com seu íntimo, então, pensávamos, tínhamos acertado em cheio com a indicação do texto de Lygia, pois esse livro certamente não estava passando em branco para esses alunos, como acontece com tantos outros que são pretensamente tidos como literatura, mas que não deixam marca alguma, são descartáveis, esquecidos no momento mesmo em que os fechamos, pois não são capazes de tocar o leitor. Na história desses leitores, esse livro ficaria em um lugar de destaque, lembrado sempre pelas emoções e reflexões que ele lhes havia provocado.

A alternativa a que chegamos, afinal, a partir dessas conversas todas, foi garantir espaços de discussão em aula, com os alunos, sobre o livro, durante a sua leitura, e até de leitura conjunta de algumas de suas partes, mesmo não sendo esse o procedimento padrão do tipo de trabalho em que, inicialmente, o texto estava inserido, a leitura individualizada, passando a se situar mais dentro da proposta da socializada (3). Assim, ao mesmo tempo em que os alunos tiveram com quem compartilhar suas questões e impressões, à medida que surgiam ou que sentiam necessidade, não ficando “desassistidos” como temiam as mães, elas puderam amenizar sua ansiedade, que nada mais era do que a dificuldade de lidar com o que seus filhos traziam. Essas questões foram trabalhadas com tranquilidade pelas professoras nas discussões coletivas, na medida em que se referiam à identificação das crianças com os medos do menino Lucas e que visavam à possibilidade de se expressarem e trocarem experiências sobre eles. E o trabalho pode chegar ao seu final, sem que precisássemos abrir mão de algo que acreditávamos ser importante para os alunos.

Mas, mesmo com essa situação “resolvida”, outras surgirão – com outro livro, com alguma peça de teatro ou filme, com uma exposição de arte ou outro “produto” que provoque qualquer desconforto nos pais –, ainda que eventualmente, ficando, então, para nós as questões: Como podemos trabalhar com as famílias auxiliando-as a entenderem que não há como “poupar” as crianças dessas situações? Como podemos prepará-las para receberem e usufruírem, junto com as crianças, esses produtos artísticos que podem trazer a discussão de algum tabu e, portanto, podem gerar algum incômodo, mas certamente ampliarão a visão de mundo de todos? Como ajudá-las a entender que as crianças veem o mundo diferente dos adultos, porque têm formas diferentes de pensar e experiências diversas? E que, portanto, não vão entender um livro, um filme, uma peça de teatro, uma canção, uma obra de arte ou a própria realidade vivida da mesma forma que seus pais? Como auxiliar os pais a se livrarem da concepção da criança como um “adulto em miniatura”, a qual provoca uma superproteção limitadora em relação ao que ela pode, ou não, estar exposta, e, ao mesmo tempo, uma superexigência em relação a atitudes e níveis de autonomia que ela não tem condições de demonstrar?

Essas e, com certeza, outras tantas questões estarão sendo levantadas no dia 6/10, lá na AMIRGS, às 19h, no 8º EPP, para o qual esperamos vocês! Até lá!

 

(1) Professora e doutora na área de Letras pela PUCRS.
(2) Escritor, desenhista e doutor em Letras pela USP, em artigo intitulado “Formação de leitores e razões para a literatura”, publicado no livro Caminhos para a formação do leitor, de Renata Junqueira de Souza (org.), pela DCL, SP, 2004.
(3) Leitura individualizada e leitura socializada são termos que utilizamos para nomear algumas das modalidades de leitura com que trabalhamos na escola: a 1ª, individualizada, é a leitura de um texto literário escolhido pela equipe pedagógica e adquirido pelo aluno, a qual é feita em casa pelos alunos, individualmente, tendo seu “fechamento” com um seminário sobre o livro lido, em que cada aluno se expressa a partir do texto, trazendo suas impressões ou reflexões oralmente, por escrito ou através de linguagem plástica ou cênica; a 2ª, socializada, é a leitura realizada pela professora aos alunos, na sala, em capítulos diários, de um texto literário escolhido pela equipe pedagógica, o qual normalmente está num nível um pouco além do que os alunos teriam condições de ler sozinhos e tem como exploração comentários e discussões que acontecem antes, durante e depois da leitura, ampliando suas possibilidades com as torças que a partir daí se estabelecem (Ver livro que publicamos em 2009, Leitura nas séries iniciais – uma proposta para formação de leitores de literatura, Ed. Projeto, POA, págs 15 e 16, 24 e 25, 32 e 33).

O tabu na sala de aula: evitar ou encarar?