Letícia Prata –
Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados.
O que elas amam são pássaros em voo
Rubem Alves
Li “A fada que tinha ideias” de Fernanda Lopes de Almeida (Ática,1971), na primeira série, na escola Experimental, em Salvador. O livro narra a história de Clara Luz, uma fada diferente, de ideias mirabolantes. Recusava-se a aprender as mágicas tradicionais, já escritas. ”Estavam emboloradas”, segundo a personagem. Ela queria criar: “chuva colorida”, “bule voador”. “Quando alguém inventa alguma coisa, o mundo anda”.
Lançado na década de 1970, o livro é um convite ao lúdico, ao poder da imaginação, ao encantamento e à mudança.Dá voz ao mundo inventivo e transgressor, encoraja a fantasia, o sonho.
Trata-se de obra provocativa, infantojuvenil, questionadora: “por que Vossa Majestade não pode abrir os horizontes? E por que não deixa as fadas inventarem suas próprias mágicas?”, indaga a nossa protagonista.A professora de horizontologia rebela-se: “Se Vossa Majestade não abrir os horizontes, eu não quero mais ser professora de horizontologia. Ou dou aula no próprio horizonte ou não dou aula nenhuma”.
A leitura da “Fada que tinha Ideias”, em tempos sombrios, resgatava a utopia, subvertia as convenções estabelecidas, ampliava os limites da realidade.Em plena ditadura, fomos moldados por Clara Luz.
Anos mais tarde, já adulta e morando em Porto Alegre, reencontrei o livro. Uma narrativa adaptada para o teatro, editada pela Editora Projeto.
Talvez, movida pelo desejo de revisitar a infância, comprei um exemplar. Ao percorrer as páginas, 41 anos depois, fiquei pensando no inusitado reencontro da obra, quase por acaso, em outra cidade, em outro momento de vida. E, ao mesmo tempo, a alegria provocada pelo achado.
Ver que a “Fada que tinha ideais” ainda hoje é lida pelas crianças, adotada por escolas, como a Experimental, em Salvador, e a Projeto, em Porto Alegre, me dá a certeza do caminho educativo iluminado pela inquietação. São escolas “com asas”, como ensina Rubem Alves. Encorajam o voo. Fazem, no dizer de Clara Luz, o mundo andar.
Texto publicado no livro Santa Sede: crônicas de botequim (Organizado por Rubem Penz, Ed. Buqui, 2017).