Texto de Ana Munari

Em sua palestra no “Fronteiras do Pensamento”, Alberto Manguel nos disse muitas coisas interessantes, inclusive monossílabos e silêncios, mas um de seus aforismos grudou em mim, provavelmente por ter vindo dele. Manguel falou que existe um livro que foi escrito exatamente para nós. Pode ser um romance, um poema, um conto, talvez um personagem…

Esse livro está lá, calado, esperando pelo leitor que é razão de sua existência. Cabe a nós, leitores, encontrar esse livro.

Angela Lago
Angela Lago

Descontadas as utopias de todo bibliófilo – naquela ocasião Manguel queria longe as distopias todas do universo livro –, não pude deixar de me fazer a pergunta sobre essa minha alma gêmea que estaria me esperando por aí, em alguma das estantes da vida. Teria eu já encontrado esse livro? O primeiro nome que me surgiu à mente foi Livro, de José Luís Peixoto. Seria ele? Será talvez por isso que eu sempre a ele retorno, relendo um que outro trecho, folheando, pensando, tentando descobrir o que certamente me esconde?

Tempos atrás eu tive um romance com Madame Bovary, uma relação íntima, secreta, cheia de encontros e desentendimentos. Escrevi e apresentei um trabalho sobre ele e parece que a paixão acalmou. E a série Harry Potter, que, afinal, deu origem a uma dissertação, uma tese e vários artigos e palestras? É amizade, daquelas que o tempo não dissolve e, quando voltamos a nos reencontrar, parece que nunca nos separamos. Mas nem um nem outro é minha alma gêmea.

Cem anos de solidão? Essa paixão arrebatadora da juventude me fez sentir que ia morrer. Como eu sobreviveria depois da última página? Amor nos tempos do cólera? Cândida Erêndira? Ninguém escreve ao coronel? Eles se sucederam como aqueles primeiros dias da paixão, eu os queria dia e noite, devorava-os com gulodice, palpitações, medo de que me abandonassem, me traíssem… Mas essa “obra” de que falou Manguel pode ser um autor? Como escolher apenas um dos Gabriel, só um?

Antes disso foi a Marion Zimmer Bradley e sua Morgana surgindo das brumas, e antes ainda as moçoilas casadoiras das coleções de Bárbara, Julia, Bianca e, minha preferida, Barbara Cartland – até hoje meus olhos sabem de cor essa senhora envolta em uma estola de plumas na contracapa. Dali pulei rapidinho para outra paixão, Jane Austen. Acho que isso prova que nosso gosto muda e que ler um gênero não significa uma predileção eterna pelo mais do mesmo. Leitores também ficam adultos, maduros, sábios pela experiência. E por que ler e escrever é sempre construir uma rede de sentidos, lembrei de Alice, aquele do país das maravilhas:

Quando eu lia contos de fada, ficava imaginando que esse tipo de coisas nunca acontece e agora estou aqui no meio de um! Deveria haver um livro escrito sobre mim, deveria sim! E quando eu crescer, eu vou escrever um… mas… eu já cresci.

Acho que é sobre isso que Manguel falava: há livros que parecem foram escritos sobre nós, não apenas para nós. Pode ser apenas um – raro, difícil de encontrar e talvez por isso ainda mais especial – ou vários, coisa só possível quando aumentamos extensivamente nossa busca. Em todo caso, é mais motivo para a gente continuar a procurar, mesmo que já tenhamos estado diante do espelho, com um Amado, McEwan, Coetze, Pepetela, Munro, Hatoun, Piñon…

Meu recente reencontro aconteceu com Lavoura arcaica e foi uma conversa diferente da primeira que tivemos, simplesmente porque, diante do espelho, estava outra leitora, amadurecida por outros encontros. Se eu fosse, agora, responder à pergunta de Manguel, escolheria essa coisa de Raduan Nassar que é mais que romance, é poesia, é tragédia, confissão, arroubo, afronta, é linguagem, a alma gêmea da leitora que sou neste exato instante. Mais uma vez, o discurso apaixonado de André conseguiu me arrebatar e me prover de silêncios… Aquele silêncio, que brota quando nossos olhos, corpo e alma são tocados por alguém que nos diz de nós mesmos. “Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja. A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.” (Manoel de Barros)

 

Um livro me encontrou