Texto de Fernanda Miranda – Distribuidora Planalto (Goiânia/GO)

Eu não vou ficar enrolando, contando que vou falar sobre um livro porque senão eu não estaria aqui nesta página escrevendo sobre ele. Também não vou contar que o livro começa com uma menina porque você que me lê, com certeza, um leitor de muito bom gosto e inteligente, só quer saber aonde toda essa conversa vai dar. Quem já leu o livro vai falar que eu estou fazendo plágio e que isso não é legal. Mas eu fui mais esperta, mudei alguma coisa que no final é a mesma coisa, mas ninguém sabe disso. E pode ser assim que se começa uma história ou uma intriga. Contando o que diz que não vai contar, despertando a curiosidade e surpreendendo a cada cena. Então vou deixar você com a história de Maria Teresa e o Javali.

Começamos com Maria Teresa no banheiro, frente ao espelho escovando os dentes. A cena descrita pelo narrador é simples e muito direta. Como também o tipo de fonte e cor utilizadas na página. Até aí tudo bem.

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De repente, o tipo da fonte e a cor branca na página verde desperta todos os sentidos do leitor. O narrador diz que se quiser é possível sentir o gosto de menta da pasta e que Maria Teresa não consegue ver todo o rosto porque o espelho é muito alto e ela é apenas uma menina. Não fosse a curiosidade de verificar se é verdade o que foi dito, o leitor seguiria em frente. Mas não. Curioso como todo bom leitor, ele volta à página anterior e confere. Um jeito muito estranho de ler um livro. Para não dizer intrigante.

Na cena seguinte aparece a mãe de Maria Teresa na cozinha preparando algo no liquidificador. Um creme verde que parece gostoso. Pode ser abacate.

Próxima cena: o pai pergunta qual é a história que Maria Teresa quer ouvir antes de dormir e ela diz que é O javali intrigante. De novo a mesma história de todas as noites. O narrador chama a atenção para a cara de contrariedade do pai. Na página seguinte o narrador convida para sair do quarto de Maria Teresa e dar uma passadinha no quarto de seus pais. Aí ele revela o truque de beleza da mãe de Maria Teresa. O creme verde que parecia abacate é na verdade um creme facial para melhorar a pele e diz que as rodelas de pepinos nos olhos deixam-na parecida com um extraterrestre.

mae_maria_teresa_pA essa altura dos acontecimentos, Maria Teresa já dormiu. O pai observa os olhos de pepino da esposa, mas não se assusta. O narrador diz que os adultos se acostumam com coisas muito estranhas.

De novo o narrador diz que durante a noite quase nada acontece. Uma geladeira que liga e desliga, um carro que passa lá fora, um estalinho no assoalho e só. Se nada acontece não tem importância. Logo amanhece e se amanhece todos os dias então não tem nada para contar. Só que nesta história este amanhecer não será como os outros e assustado ele pede ajuda ao leitor.

Maria Teresa acorda com um javali em seu quarto e não acredita no que os olhos veem. Como não é muito normal acordar com um javali ao lado a história agora toma outro rumo e mesmo que o leitor duvide que isso aconteça, há sim uma explicação muito simples se é que uma coisa estranha como essa possa ser simplesmente explicada. Pelo que eu entendi, de tanto ouvir a mesma história do mesmo livro todas as noites, Maria Teresa sonhou com o javali. Nos sonhos como de costume, o javali aparecia tomando suco de uva. E bem nesta noite durante o sonho o suco acabou. Sedento o javali saiu do sonho para buscar mais suco na geladeira e ao voltar acabou tropeçando no criado-mudo despertando Maria Teresa. Agora ele quer ir embora mas precisa que Maria Teresa volte a dormir e sonhe.

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Tenho certeza de que não pode imaginar o diálogo travado entre os personagens. Para começar, o javali, animal selvagem e sem educação, arrota a todo o instante. Não deve ser nada agradável o cheiro do arroto. Também não gosta que o chamem de senhor e sim de Java. E se algum dia estiver frente a frente com um javali, todo cuidado é pouco. Se tem uma coisa que o irrita é ser chamado de porco. Segundo ele são coisas bem diferentes.

O que começou com um sonho agora virou um pesadelo para Maria Teresa que nem está dormindo. Daí pra frente o javali vai colocar a menina em situações complicadas em casa, na escola e no ônibus ao voltar. É preciso dormir e sonhar para que fique livre do javali.

E aí você, leitor, quer saber onde foi parar o narrador? Ele continua lá com suas intervenções e provocações. Não contente com o espaço que lhe foi dado em páginas inteiras, agora também ocupa as laterais das páginas guiando o olhar do leitor e até indicando trilhas sonoras para as cenas de grande tensão e medo.

Eu poderia contar como é que termina esta história, mas aí não teria graça porque foi ela que me ajudou numa outra história que vou contar agora. E esta é de verdade.

Maria Teresa e o Javali é o nome do livro de autoria de Gustavo Finkler com ilustrações de Renata Mattar. Depois de ler o exemplar que recebi no departamento de divulgação, resolvi levá-lo para uma professora que procurava por uma leitura para iniciar o ano letivo. Alunos de 6º ano. Pensei logo em Maria Teresa e o Javali. Os alunos estavam voltando de férias e conheço bem como é isso quando se deparam com uma lista enorme e sem muitos atrativos. Mas era preciso primeiro mostrar que, além de uma história engraçada, o autor oferecia também a oportunidade de apresentar aos alunos a importância do foco narrativo e até que ponto a história poderia ter uma recepção diferente. Não foi à toa que durante todo o texto eu falei sobre o narrador e não o deixava de lado. Além de Maria Teresa e o javali, o narrador tem o seu valor na condução das cenas. E é na história de Finkler que nos deparamos com o narrador intruso que a todo o momento rouba a cena dos personagens, faz perguntas ao leitor, mostra objetos que compõem a cena, sugere sons, cheiros etc. E tudo com muito humor, irreverência e intriga.

Propus outra atividade e desta vez com a professora de redação. Por que não reescrever o texto e agora utilizar o narrador na 1ª e na 3ª pessoa? O resultado surpreendeu a todos. O que era para ser a leitura de um livro passou a ser, além disso, a composição de vários e os alunos trocaram os textos entre si no final do bimestre.

Segundo as professoras, os alunos gostaram muito das atividades e estavam sempre torcendo pelo javali.

Eu também apostei nele.

 

Maria Teresa e o Javali