Texto de Ana Munari

Muitas pessoas veem os professores de língua portuguesa e de literatura como reacionários em relação à língua e à linguagem. No entanto, são justamente aqueles que as conhecem bem que sabem que toda língua é resultado de um processo e, portanto, está em constante mutação. Através das linguagens – e aí incluímos as artes e as expressões culturais em geral, além da comunicação verbal – as línguas sofrem mudanças em todo o planeta, desde através das relações interpessoais, entre grupos, entre trocas de falantes de línguas diferentes e, atualmente, muito a partir das mudanças tecnológicas. Sempre que surge um novo meio de se comunicar ou de produzir linguagem, a língua também muda, seja através de seu dicionário – recebendo novas palavras ou perdendo outras –, seja em sua gramática, adaptando sua sintaxe ao novo meio ou à nova linguagem. E ainda uma mesma palavra pode adquirir novos sentidos ou, na passagem para outra língua, ser pronunciada de outra forma – a fonética, aliás, justifica grande parte das mudanças das línguas românicas. O caso mais típico está na palavra você – que surgiu como Vossa Mercê, era falado como vossamecê, vossemecê, depois vosmecê, com a variante vosmicê, e desembocou no você, hoje o cê em alguns estados brasileiros, ocê em outros. E ainda em outros, segue o tu – usado na fala e na escrita entre os portugueses. Além disso, não esqueçamos as diferenças que se estabeleceram entre o português brasileiro, o lusitano e o africano.

Assim, quando nos damos conta do desaparecimento da preposição em algumas – para não dizer quase todas – construções usadas na escrita de posts no Facebook, não é motivo para a inscrição no grupo dos apocalípticos e para erguer uma bandeira contra a mudança da língua. No dia em que travarmos o processo que a língua é, vamos parar de nos comunicar. No entanto, como integrada ao uso, senão formal, belo, da língua, uso esse que encontramos nos escritos cristalizados dos grandes escritores, às vezes não deixo de lamentar quando enxergo certo empobrecimento da linguagem escrita. É difícil não usar a palavra empobrecimento ao falar de algumas mudanças, apesar da evidente polêmica sobre o que seja empobrecer uma língua, afinal, ela existe para ser usada, frente e verso, verso e anverso, direito e avesso, e se tudo é adaptação em uma sociedade que se comunica e se transforma, o que é empobrecer?
A pergunta talvez então seja se estaríamos, nesse processo, empobrecendo nossa comunicação. A língua portuguesa é conhecida como própria para a linguagem lírica, para as figuras de linguagem e de estilo, justamente por sua complexidade. Não sou especialista no assunto, mas é sabido que entre as línguas românicas a nossa é a mais complexa. Por quê? Pergunte à literatura, começando pela medieval e suas construções verbais peculiares.

Estudando o francês e o inglês, é frequente perceber que há coisas que não conseguimos expressar exatamente como aquilo que sentimos, principalmente em relação a questões temporais, relacionadas a processos de continuidade e passado anterior – gerúndio e pretérito mais que perfeito –, sensações, estados que são expressados com muito mais frequência na escrita e sobretudo na escrita literária. Assim, deixando de lado essa complexidade e, ainda, a complexidade da linguagem literária, talvez deixemos de expressar as minúcias da vida. E não é exatamente nessas minúcias que estão o peculiar, o belo, o assombro, a pergunta, a descoberta? Será que nossa linguagem vai-se tornando mais curta e grosseira? E assim vamo-nos tornando mais curtos e grosseiros? Cegos para a complexidade do mundo porque não a podemos comunicar?

Não sei. O trem não para e a gente não sabe o destino além daquele óbvio para cada um. E, tomando o trem, vou terminar com Adélia Prado, essa poeta mineira que enxerga beleza nos mosquitos em uma cozinha ensolarada:
“Não dou conta de pegar o ser de uma rosa, de um rio, de uma passagem, de um rosto. Só quem consegue revelar esse ser das coisas é a arte, que nos mostra a beleza suprema delas.”

O trem sem estação das línguas