Texto de Ana Munari

Há pessoas que sentem prazer em pegar uma bicicleta e suar por estradas acidentadas, e há quem goste de arriscar-se na magrela ziguezagueando entre carros e buzinas. Há os que preferem subir a montanha a pé e tiram aquelas fotos com um sorriso em corpo alquebrado, na contemplação das alturas. O ar de prazer vitorioso ainda surge na face dos que cruzam linhas de chegada, oceanos bravios ou daqueles que se engajam em causas humanitárias – às vezes em zona de guerra, de fome, de miséria. Ajudar causa facilmente o prazer, mas ter coragem de buscá-lo em meio a bombardeios ou passando fome, frio e ainda enxergar o sofrimento dos outros, não é para qualquer um, quando pode ser difícil até tirar as moedas do bolso e entregar em uma mão manchada de abandono.

Grande parte das pessoas fica satisfeita com um bom prato da comida tradicional do seu canto, feitinho em casa ou em bom restaurante, mas há quem prefira sair por aí experimentando tudo, larvas, formigas, peixes venenosos, ervas amargas, o sabor do exótico. Há quem suspire de satisfação ao acordar de manhã e enxergar por uma janela envidraçada uma imensa cidade coberta por aquela poeirinha de poluição – nem enxergam a poluição, mas o agito da metrópole, com seus barulhos, gentes e promessas de diversão urbana. Há quem só acorde de bom humor com o barulho dos pássaros e o cheiro de mato. Há quem se sinta confortável em cama de campanha mas não em king size de SPA. Há quem goste de rua, dança, sol; há quem goste de quarto fechado, silêncio, chuva. E um dia pode ser diferente do outro, porque há quem goste de mudança. E há quem goste da rotina.

E além de tudo isso, o mundo muda, a gente muda (e agora eu lembrei do Topol cantando “Tradition” e vou ter de ver de novo) ou vice-versa. Ao bebê, o leite materno é uma delícia, à criança o carrinho de brinquedo leva-a a longas jornadas. Se a gente é criança gosta de dar susto nos outros, espiar e descobrir segredos, viver aventuras, e há quem siga gostando disso a vida inteira. Há quem tenha nascido para o mais do mesmo e há quem se entedie no correr das horas. Nosso paladar muda, amadurecemos nossos gostos a partir do conhecimento e da experiência e também a partir do nosso bolso.

E assim é com a literatura.

Há quem goste de penetrar em um mundo de descrições: “Era em setembro, e a casa, temporariamente habitada, expulsava o seu caráter de abandono e de ruína, com aquele calor de vozes e de passos que amarrotavam folhelhos amontoados em todos os sobrados. O tempo estava morno, impregnado dessa quietude de natureza exaurida que se encontra num baque ondulante da folha, ou na água que corre inutilmente pela terra eriçada de canas donde a bandeira do milho foi cortada.”

Há quem só não pestaneje se houver ação: “Serra a cabeça do cachorro e parte do painel do carro. Sangue e resíduos de ferro se estilhaçam. A menina está em choque.”.

Há os que só gostam das conversas: “– Mas acabei de dizer que não sei contar piada. – Conta, vai, a dor ta voltando. – Mesmo? – Piadinha pra me distrair, Rui. – Piada? Sei lá, deixa eu lembrar de uma piada… – Qualquer uma, Rui. Anda. – É que eu não sei contar piada. – Não precisa saber contar. Só fala a piada.”.

Há aqueles para quem a visão do mundo é melhor mediada pela percepção poética: “Quando cheguei à baía de Matimati já eu perdera contas às madrugadas. A vila se deitava no abraço da água, parecia que estava ali mesmo antes de haver mar. O que testemunhei naquela povoação foram coisas sem hábito neste mundo. Gentes imensas se concentravam na praia como se fossem imensos destroços trazidos pelas ondas.”

Há quem só goste de histórias de ver e de ouvir, e há os que – desumanamente, eu diria – não gostam de histórias, nem de poesia, nem de qualquer arte. Há os que, especialmente egocêntricos, gostam de pouca coisa. A verdade é que há gosto para tudo, e há que se respeitar isso. Mas também há outra verdade: aquela que já nos mostrou que tanto mais ricas nossas experiências, mais conhecimento humano e do mundo, mais sábios nos tornamos. Como leitores, também é assim, precisamos provar, comparar, trocar, experimentar de novo, estudar, avaliar, e vamos nos tornando leitores sábios. Para os estudantes de literatura, o que inclui professores, ser um leitor sábio – e autônomo e crítico – é um dever de cidadão.

Podemos sentir prazer em observar atentamente a gota de orvalho balouçando a folha até que tudo fique tão estático e silencioso como se o mundo parasse para nos falar aquilo que nossos ouvidos ainda não conseguem perceber, ou sentir prazer em mastigar a crocância do alimento estranho e encontrar um novo sabor, não importa. Importa é que sejamos leitores, de livros, de textos, de gentes, de culturas, da natureza, do mundo e da vida, atentos e contemplativos, ávidos e parcimoniosos, pacientes e intolerantes, desconfiados e crédulos, e que isso nos sirva para agenciar uma realidade mais justa. E assim, era uma vez, como um estalo da folha seca ou a passagem de uma moto veloz, a literatura nos encontra, ali, na palavra. E nos tornamos leitores para sempre.

Leitores felizes para sempre